Não há razão para temor em relação ao amanhã. A divisão das urnas é o mais eficaz antídoto contra o autoritarismo.
Lula e Collor, debate 1989
(Imagem: Arquivo Google)
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Por Gaudêncio Torquato
O Brasil que sai das urnas
mostra ser um dos maiores laboratórios da democracia contemporânea. Os nossos
142 milhões de votantes posicionam o país no quarto degrau do ranking
eleitoral, cujos três primeiros lugares são ocupados pela Índia, com 815 milhões
de eleitores, os Estados Unidos, com cerca de 215 milhões, e a Indonésia, com 187 milhões.
O termo laboratório aponta
para um sistema democrático em fase de consolidação, não significando,
portanto, uma democracia plena, nos termos do Índice Democrático, criado pela
prestigiada revista The Economist por meio de pesquisa feita em 167 países.
Nessa planilha – que leva em
consideração categorias como o processo eleitoral e o pluralismo, as liberdades
civis, o funcionamento do governo, a participação popular e a cultura política
– ocupamos a 45ª posição, ao lado de países de democracia imperfeita, dentre os
quais, pasmem, estão democracias de
forte tradição como a francesa (29ª), a italiana (31ª) e a grega (32ª). A Índia,
por exemplo, está na mesma faixa do Brasil, ocupando o 39º lugar.
São visíveis os sinais de
que temos dado vigorosos passos no caminho do aperfeiçoamento, bastando
considerar que há 50 anos o país entrava na escuridão de um golpe militar que durou 21 anos, tendo fixado as linhas mestras de
sua democracia apenas a partir de 1988, com a chamada Constituição cidadã, que
veio atender as demandas da sociedade organizada.
Sob uma pletora de
liberdades, direitos e deveres, garantidos pela CF, realizou-se o pleito mais
competitivo das últimas décadas. A animação da vida cívica que se viu constitui
expressiva amostra da efervescência inerente às democracias incipientes. Não há
motivo para assombro.
Se formos projetar os tipos
de voto dados aos candidatos da situação e da oposição, domingo passado,
encontraremos pontos em comum com as competições de outros países. Em maio
deste ano, por exemplo, o partido nacionalista da Índia obteve vitória
esmagadora sobre o partido do Congresso, acabando com 10 anos de poder da
dinastia Ghandi-Nehru, deteriorada (sabem por quê?) pelo precário crescimento
do país e por uma batelada de escândalos de corrupção.
Já nos Estados Unidos, a
votação dos democratas é geralmente associada a grupos e setores avançados,
progressistas, simpáticos às causas sociais; os votos republicanos são oriundos
de polos conservadores nas áreas dos costumes (contra o aborto, contra o
casamento gay e a legalização de drogas), dos valores morais e da economia
(defesa do Estado-mínimo, redução de impostos, privatizações, fim de programas
sociais etc).
Não se trata simplesmente de
comparar as eleições no seio das democracias para concluir que todos os países
são assemelhados nesse quesito, mas pinçar a hipótese de que existe uma
razoável carga de conteúdos comuns às Nações democráticas. Parcela do acervo
temático é gerador de animosidade entre grupos e partidos, contribuindo para o
acirramento do debate, extrapolando o campo das ideias para entrar na vida
íntima dos atores políticos.
A campanha negativa,
empreendida pelas duas bandas, foi a marca mais forte da competição. O alto
teor de agressividade, expresso por candidatos e seus gurus, lembrou a
histórica disputa de 1989, quando Fernando Collor, que acabou vitorioso, jogou
no ar o bombástico depoimento da enfermeira Miriam Cordeiro dando conta de um
pedido de Lula da Silva, de quem era companheira, para cometer um aborto.
Ora, as insinuações
malévolas produzidas pelos dois lados na arena eleitoral não diferem da bateria
de insultos e acusações que os competidores
democrata e republicano desfecham entre si na campanha norteamericana.
Lá, a “linguagem da lama” (mudslinging) é frequente e intensa, sendo usada de
forma intensa na mídia eletrônica. Por aqui, essa estratégia acabou sendo usada
pesadamente e com efeitos deletérios. Cada exército lutou por sua meta: de um
lado, a continuidade do ciclo petista, de outro, a abertura de uma nova era.
A mais disputada peleja da
contemporaneidade refletiu a fisionomia cultural do nosso corpo político. Mais
que uma luta esganiçada entre regiões, como incautos chegaram a enxergar, o que
se viu foi uma batalha entre duas forças: uma, abrigando o voto material;
outra, o voto valorativo. A primeira reúne os contingentes atentos às coisas
materiais, concretas, como os pacotes assistencialistas do governo – bolsa
família, minha casa, luz para todos,
minha casa, minha vida etc.
O sufrágio ligado ao bolso e
à barriga foi despejado nas urnas,
sobretudo, pelas massas que dependem do Estado. A segunda força votou na carta
de valores: a ética, a dignidade, a seriedade, a moral, tendo como pano de
fundo, o repúdio aos escândalos e às denúncias. A previsível dualidade balizou
o pleito até o final. O voto material suplantou o voto valorativo. O que não
significa que as duas modalidades se repartiram plenamente. A petista também
teve voto valorativo e o tucano ganhou voto material.
A explicação para tal
composição estava escancarada, mas passou ao largo da percepção da campanha
tucana: a maior base eleitoral do país ainda situa-se nas margens e no primeiro
andar da classe média (C), que votam olhando para o bolso. Apelo a valores é,
para eles, uma abstração.
A cultura desse aglomerado
tende a repartir o lixo imoral da corrupção por toda a esfera política. Por
isso, a pregação de princípios éticos não comoveu as margens, tão somente
consolidou a opinião dos “convertidos”, a banda que já decidira o voto no
senador mineiro.
A tuba de discriminação que
se espraiou pelas redes sociais – culminando com abordagens defendendo a
divisão do país -, a par de leitura enviesada de resultados (os dois tipos de
votos permearam a votação em todas as regiões), funcionou como canal da livre
manifestação, mostrando, ainda, intensa participação do eleitor no processo
político. Mais um atestado de vitalidade democrática.
Não há razão para temor em
relação ao amanhã. A divisão das urnas é o mais eficaz antídoto contra o
autoritarismo.
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