Passei a noite de 31 de março de 1964 para 1º de abril
pulando, no DKW azul de meu pai, da sede do governo paulista, então no Palácio
dos Campos Elíseos, para o QG do Exército, à época na rua Conselheiro
Crispiniano, no centrão, cobrindo para o jornal carioca "Correio da
Manhã" o que mal sabia que viria a ser o golpe que faz 50 anos logo mais.
Após 50 anos, só um fanático negaria o quanto o país mudou
para melhor em termos institucionais, por muito que falte para chegar a ser
plenamente civilizado.
Para a grande maioria dos brasileiros, que não viveu aquela
madrugada nem as trevas densas que a ela se seguiram, é difícil compreender o
avanço que é os jornalistas já não precisarmos mais fazer plantão às portas dos
quartéis. Ou ser obrigado a decodificar o Almanaque do Exército para tentar
entender se a promoção a general de fulano ou beltrano podia significar mais
fechamento ou alguma abertura.
Por falar em "Correio da Manhã", meu primeiro
emprego, acabou sufocado pela ditadura, mesmo tendo publicado dois dos três
editoriais mais notórios de todos os tempos ("Basta" e
"Fora"), cobrando a deposição do presidente João Goulart.
Depois se arrependeu e passou a ser crítico do novo regime,
o que levou a uma implacável perseguição, incluída forte pressão sobre os
anunciantes, até quebrar.
O estudante Edson Luis assassinado durante a ditadura militar |
Um caso como esse, apenas uma entre as milhares de
arbitrariedades e violências praticadas no período 1964/1985, torna até
risível, hoje, achar que os governos do PT pretendem acabar com a liberdade de
imprensa. Que gostariam de ter uma mídia domesticada, gostariam, como todos os
governos, de qualquer signo.
Mas, na democracia, não dá para fazer o que a ditadura pôde
fazer com o "Correio da Manhã".
Na democracia, quem quer grita "onde está
Amarildo" –e os policiais responsáveis por seu desaparecimento acabam
descobertos e punidos. Na ditadura, milhares de gritos similares foram
silenciados e, mesmo depois de encerrado o ciclo, ainda não se chegou à
verdade, do que dá prova a existências das "Comissões da Verdade".
O golpe que faz 50 anos em 2014 inaugurou um ciclo nefando
na América Latina. Primeiro, caiu a Argentina (1966, com uma recaída 10 anos
depois), depois o Uruguai, o Chile –até que todos os países sul-americanos e a
maioria dos latino-americanos se transformassem em ditaduras, exceção feita a
Venezuela, Colômbia, México e Costa Rica.
Cinquenta anos depois, caiu na rotina a realização de
eleições presidenciais. Serão sete só este ano (El Salvador, Costa Rica,
Colômbia, Panamá, Bolívia, Uruguai e o próprio Brasil).
No Brasil, aliás, será a sétima consecutiva, santa rotina
que marca um recorde, como lembrou ontem Fernando Rodrigues.
É tal a rotina que posso ter a certeza de que jamais
voltarei a fazer plantão à porta dos quartéis, mas nem por isso dá para
esquecer que levou 35 anos para que um presidente legitimamente eleito passasse
a faixa para outro presidente eleito nas mesmas condições.
Clóvis
Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos
prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano.
É autor de obras como "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo" e
"O Que é Jornalismo". Escreve às terças, quintas e domingos na versão
impressa de "Mundo" e às sextas no site
0 comentários:
Postar um comentário