Como uma cidade do tamanho de João Pessoa pode se manter no centro dos assuntos mais relevantes do planeta por 4 mil anos? Para judeus, cristãos e árabes, a resposta passa tanto pela história quanto pelos mitos
por Eduardo Szklarz
O grito de guerra ecoou nas
pedras crispadas pelo sol naquele setembro de 1187: Alá-hu akbar! (“Deus é
grande!”). Sob o comando do sultão Saladino, o exército muçulmano celebrava
sucessivas conquistas na Galiléia e agora marchava rumo ao objetivo máximo:
Jerusalém. A missão era recuperar a cidade santa após 88 anos de domínio dos
cruzados. Saladino montou acampamento no monte das Oliveiras e avistou a enorme
cruz no topo da Cúpula do Rochedo, um dos tantos santuários islâmicos
profanados pelos infiéis. As tropas inimigas logo se renderam, e no dia 2 de
outubro Saladino entrou triunfante na cidade murada. Ele tolerou a permanência
dos cristãos, permitiu a volta dos judeus que haviam sido expulsos e purificou
o solo de Jerusalém segundo os preceitos do islã.
Em julho de 2000, uma
multidão se reuniu nas ruas de Gaza gritando vivas ao “novo Saladino”: um
velhinho de voz trêmula e corpo arqueado. Tratava-se do palestino Yasser
Arafat, que voltava da conferência de paz de Camp David, nos EUA. Lá ele havia
rejeitado a proposta de divisão de Jerusalém oferecida pelo primeiro-ministro
israelense Ehud Barak e pelo presidente americano Bill Clinton. Agora, fazendo
o V da vitória, Arafat era glorificado nas ruas como a reencarnação do herói
que tomou a cidade dos cruzados em 1187.
Histórias como essas ajudam
a explicar por que Jerusalém se mantém por tanto tempo no centro do mundo. Em
nenhum outro lugar o passado reverbera no presente de maneira tão profunda.
Sempre escutamos que a cidade é sagrada para cristãos, judeus e muçulmanos, mas
essa é apenas uma parte da história. Segundo vários pesquisadores, Jerusalém só
alcançou importância global porque seu caráter sagrado vem sendo utilizado como
propaganda política. Templos, batalhas e personagens (reais ou imaginários)
podem ficar esquecidos durante milênios... e, de repente, ressurgir com força
total para legitimar uma nova ideologia, um carro-bomba ou um míssil
teleguiado.
Arafat não foi o único a
evocar a simbologia de Jerusalém para atrair adeptos. Osama bin Laden, líder da
Al Qaeda, e Hassan Nasrallah, chefe do Hezbollah, também usam a figura de
Saladino ao pregar a jihad contra o Ocidente. O ex-premiê israelense Ariel
Sharon gostava de aludir à memória dos guerreiros macabeus, símbolos da
resistência judaica contra o império selêucida, em 167 a.C. O ex-presidente
iraquiano Saddam Hussein se proclamou sucessor de Nabucodonosor, rei da
Babilônia, que destruiu o Templo de Salomão em 586 a.C. e mandou os judeus para
o exílio. O presidente americano George W. Bush seguiu a mesma receita quando
usou a palavra “cruzada” para lançar a guerra contra o terrorismo.
Não é à toa que a Cidade
Dourada – que hoje tem uma população aproximada de 700 mil habitantes,
equivalente à de João Pessoa (PB), Campo Grande (MS) ou Santo André (SP) – tem
sido a mais disputada da história. “Nos últimos 4 mil anos, houve pelo menos
118 conflitos por Jerusalém. Ela foi 2 vezes destruída, 23 vezes sitiada, 52
vezes atacada e 44 vezes capturada e recapturada, por tribos ou exércitos de
impérios”, diz o historiador Eric Cline, autor de Jerusalem Besieged
(“Jerusalém Sitiada”, sem tradução no Brasil). Nesta reportagem, vamos
reconstruir a história da cidade para tentar entender por que o passado, o
presente e o futuro da humanidade passam por ali.
Os primórdios
Na hora de defender seus
direitos sobre Jerusalém, os líderes de hoje usam dois argumentos principais:
seus antepassados chegaram lá primeiro e sua ligação com a cidade é a mais
autêntica. E, claro, negam as versões dos outros. Os palestinos não aceitam as
evidências arqueológicas do reino judaico fundado por Davi há 3 mil anos. Os
israelenses acham absurda a história de que Maomé subiu ao céu a partir de lá –
motivo da devoção islâmica à cidade. Há controvérsia até entre os
pesquisadores, pois a fonte de muito do que se afirma sobre Jerusalém são
textos sagrados, não documentos históricos.
“Para muita gente, certas
histórias sobre Jerusalém não passam de mitos. Mas não devemos descartá-las por
isso. A questão de Jerusalém é explosiva exatamente porque a cidade adquiriu
status mitológico”, diz a historiadora britânica Karen Armstrong, autora de
Jerusalém: Uma Cidade, Três Religiões. Aí é que mora o problema: se você
acredita que Deus lhe deu uma terra, vai ser difícil dividi-la. “É quase
impossível falar da cidade de maneira racional”, diz o jornalista americano
Richard Zimler, especialista em religiões comparadas.
Afinal, quem chegou primeiro
à cidade? Ninguém sabe. Cerâmicas encontradas em tumbas do monte Ofel, ao sul
das atuais muralhas da Cidade Velha, sugerem que o local já era habitado em
3200 a.C. Nessa época, teriam surgido as primeiras cidades em Canaã (região que
hoje englobaria Israel, Gaza, Cisjordânia e partes da Jordânia, da Síria e do
Líbano). Como ficava sobre um platô de difícil acesso, distante dos portos do
Mediterrâneo, Jerusalém foi durante muito tempo uma ilustre desconhecida. No
século 19 a.C., porém, ela chamou a atenção dos faraós do Egito – sabemos disso
graças aos Textos de Execração, em que os egípcios listavam as cidades e
governantes inimigos.
Jerusalém teria se tornado
um núcleo urbano um século mais tarde, quando provavelmente estava nas mãos dos
cananeus. Em algum momento depois disso (não se sabe ao certo quando), a cidade
foi conquistada pela tribo dos jebusitas.
No século 13 a.C, outro povo
entrou em cena: os israelitas, descendentes de Abraão. Segundo a Bíblia, Abraão
nasceu na Mesopotâmia e emigrou para Canaã atendendo a um chamado divino – daí
ser conhecido como o primeiro hebreu (“o que vem do outro lado”). Os israelitas
haviam sido escravizados no Egito. Liderados por Moisés, escaparam e viveram
como nômades na península do Sinai até alcançar Canaã, que lhes havia sido
prometida por Deus.
Os israelitas formaram dois
reinos em Canaã: um ao norte (Israel) e outro ao sul (Judá, nome de uma das 12
tribos israelitas). Por volta do ano 1000 a.C., o rei Davi unificou os reinos
e, para agradar a ambos, escolheu governar de uma cidade neutra: Jerusalém. Só
faltava conquistá-la.
Assim, depois de várias
tentativas, Davi tomou a fortaleza jebusita. Seu exército entrou pelo norte da
cidade, mais vulnerável, já que os outros lados eram protegidos naturalmente
por barrancos. “Como a topografia não mudou muito nos séculos seguintes, a
mesma tática seria usada por conquistadores babilônios, gregos, romanos,
cruzados, otomanos, ingleses, árabes e israelenses”, diz Eric Cline.
Segundo a tradição judaica,
Davi levou para Jerusalém a Arca da Aliança, onde estavam guardadas as tábuas
dos Dez Mandamentos. Seu filho, o rei Salomão, completou a empreitada
construindo um templo para Javé, Deus de Israel, no topo do monte Sião.
Jerusalém saía da periferia para se tornar o centro do judaísmo. Mais do que
isso, ela passou a simbolizar o lugar de Deus na Terra – um único Deus, tal
como dizia o patriarca Abraão.
Três mil anos se passaram,
mas essas histórias continuam fundamentais para entender as disputas pela
soberania de Jerusalém. Os israelenses todo ano festejam a conquista de Davi
como o marco zero da fundação da cidade – embora ela já existisse muito antes.
Os palestinos não fazem por menos. Em outubro de 1999, Faisal Husseini,
ex-ministro da Autoridade Palestina e homem de confiança de Arafat, declarou
que era descendente dos jebusitas, que chegaram a Jerusalém antes de Davi. Esse
tipo de argumento também não tem base histórica, já que os palestinos modernos
fazem parte do povo árabe, e os árabes chegaram a Jerusalém no século 7 depois
de Cristo – e 16 depois de Davi. Porém, ele é extremamente eficiente na hora de
conseguir adeptos nas ruas.
Da Babilônia a Roma
A cidade dos israelitas foi
chamada Ierushalaim – hebraico para “cidade da paz”. Mas paz é o que ela menos
tem visto. Com a morte de Salomão, o reino foi sacudido por conflitos internos
até se tornar uma mera zona de separação entre a Mesopotâmia e o Egito. No fim
do século 7 a.C., virou alvo da disputa entre egípcios e assírios. Mas quem
levou a melhor foram os babilônios: em 586 a.C., o rei Nabucodonosor destruiu o
templo e mandou milhares de judeus ao exílio na Babilônia.
Em 538 a.C, houve uma nova
reviravolta. O rei persa Ciro derrotou os babilônios e uniu a maior parte do
Oriente Médio num só Estado, que ia da Índia ao Mediterrâneo. Ele transformou
Judá numa província persa (que passou a ser conhecida como Judéia) e permitiu
que os israelitas voltassem a Jerusalém. Agora eles já eram chamados de judeus,
mesmo que não pertencessem à tribo de Judá.
Aqueles fatos ainda
repercutem. Nos anos 1980, o governo iraquiano promoveu o festival cultural De
Nabucodonosor a Saddam Hussein, no qual o presidente anunciou as façanhas do
rei babilônio como modelo para sua estratégia no Oriente Médio. Saddam
inclusive distribuiu uma foto sua ao lado de uma réplica da carroça usada por
Nabucodonosor.
Com a conquista de Jerusalém
pelos persas, em 538 a.C., os judeus reconstruíram o templo e retomaram seus
cultos. A vida tranqüila só chegou ao fim 200 anos depois, com a derrota dos
persas para o macedônio Alexandre, o Grande, que colocou a Judéia em contato
com a cultura grega. Após a sua morte, Jerusalém caiu na disputa de duas
dinastias gregas rivais: os selêucidas e os ptolomeus.
Em 200 a.C., Antíoco, rei
dos selêucidas, finalmente pôs os ptolomeus para correr e mudou o nome da cidade
para Antioquia da Judéia. Ele desfigurou o templo e o dedicou ao deus grego
Zeus. “Antíoco proibiu a prática do judaísmo. Foi a primeira perseguição
religiosa da história”, diz Karen Armstrong. A reação foi arquitetada pelo
sacerdote Matatias, da seita judaica dos asmoneus. Conhecidos como macabeus, os
revoltosos combateram os conquistadores por 16 anos. Em 141 a.C., eles
destruíram a fortaleza selêucida e instalaram um reino independente – o último
Estado judeu que existiria por lá até a recriação de Israel, em 1948.
Por isso, a revolta dos
macabeus teve uma profunda repercussão no mundo moderno. Ela inspirou a criação
do movimento sionista, no século 19, que pregava a volta dos judeus a Sion
(Jerusalém) para restaurar ali o seu lar nacional. No livro O Estado Judeu, de
1896, o líder sionista Theodor Herzl dizia: “Uma maravilhosa geração de judeus
vai surgir. Os macabeus vão se erguer outra vez”.
Por ironia, o governo dos
asmoneus abriu ainda mais espaço à cultura grega e enfezou outras facções
judaicas, principalmente os fariseus e os essênios. A luta entre esses grupos
atraiu a atenção de Roma, os EUA da época. Em 63 a.C., o general romano Pompeu
tomou Jerusalém e, para variar, profanou o templo. “Seus soldados cortaram a
garganta dos que estavam no altar”, escreveu o historiador Flavio Josefo,
contemporâneo desses fatos, no livro Antiguidades Judaicas.
A idéia inicial dos romanos
era resolver a disputa de poder na Judéia. Mas eles resolveram ficar e exercer
o governo, sem perceber o lodaçal em que estavam afundando. Havia movimentos de
revolta contra o invasor, disputas entre as facções judaicas, outros invasores
aproveitando o pandemônio e – não menos importante – as brigas internas na sede
do império (nesse ínterim, Júlio César tomou o poder de Pompeu, foi traído
pelos senadores e assassinado). A Judéia vivia o caos, e o poder em Jerusalém
trocava de mãos com freqüência extraordinária. Até que Herodes, filho de um
líder local apoiado por setores romanos, fugiu para Roma e convenceu os
senadores de que era o sujeito certo para governar a província. Em 40 a.C.,
obteve deles o título de “rei dos judeus” e voltou para a Judéia no ano
seguinte.
No ano 37 a.C., Herodes
conquistou Jerusalém. Seu governo sanguinário deixou pelo menos uma
benfeitoria: a restauração do templo dos judeus, que na época já tinha 500
anos. Esse ficou conhecido como o Segundo Templo – embora, na prática, fosse o
terceiro.
A revolução de Jesus
Poucos anos depois, o
santuário sofreu nova ameaça. Comandada por um homem montado num jumento, uma
pequena procissão desceu o monte das Oliveiras, atravessou o vale do Cedron e
entrou em Jerusalém aos brados de “Salva-nos, filho de Davi!” O homem era
Jesus, um profeta judeu da Galiléia. Ele rumou para o templo e usou um tipo de
chicote para espantar os cambistas e vendedores de pombos.
“Jesus não protestava contra
o comércio no espaço sagrado. Essa gente era essencial para as atividades de
qualquer templo antigo”, diz Karen. Segundo a historiadora, o episódio poder
ter sido a demonstração física de uma profecia: não iria sobrar pedra sobre
pedra naquela sociedade submissa aos emissários de Roma. Qualquer que fosse sua
intenção, a performance no templo foi uma clara afronta à autoridade, do tipo
que não passaria impune.
Segundo a Bíblia, o
procurador romano Pôncio Pilatos condenou Jesus à morte e o obrigou a carregar
uma cruz pelas ruas de Jerusalém até o monte Gólgota, ou lugar da Caveira
(Calvarius, em latim), onde foi crucificado. Aquele devia ser o final da
história, mas logo surgiram rumores de que Jesus ressuscitara. Seus discípulos
seguiram rezando no templo como judeus, mas alguns deles entraram em choque com
o sistema religioso e se refugiaram em Antioquia (atual Turquia). Foi lá que
receberam pela primeira vez o nome de cristãos, porque diziam em grego que seu
mestre era Christos, o Ungido, o Messias.
No ano 66, a luta entre
facções judaicas havia descambado para a guerra civil. Para complicar, o
procurador romano Floro não teve idéia melhor que surrupiar tesouros do templo.
Foi a gota d’água para uma nova revolta judaica, liderada pela seita dos
zelotes. Nesse clima tenso, entrou em ação um grupo judaico ainda mais radical,
o dos sicários. Seu nome vem do latim sicae, uma adaga curva que eles usavam
para matar os romanos e simpatizantes.
Para reprimir os revoltosos,
Roma destacou Vespasiano, seu melhor general. Ele reuniu cerca de 60 mil
soldados e planejou um ataque decisivo a Jerusalém, mas precisou voltar a Roma
para suceder o imperador Nero. A tarefa coube então a seu filho Tito, que sitiou
a cidade em agosto do ano 70. Como em outras vezes, o templo foi palco das
lutas mais sangrentas.
Resultado: a revolta foi
massacrada e o templo novamente destruído. Da estrutura original sobrou só o
Muro das Lamentações, um trecho da muralha externa – hoje o local mais sagrado
do judaísmo. Antigo centro espiritual, Jerusalém era pouco mais que uma base
longínqua do império. Os judeus expulsos iniciaram uma grande diáspora pelo
mundo. Os que ficaram foram tomados por uma nova surpresa no ano 130, quando o
imperador Aélio Adriano visitou a cidade e anunciou que a transformaria num
centro de adoração dos deuses pagãos. Se levado a cabo, o projeto jogaria uma
pá de cal na ligação judaica com Jerusalém.
Assim, entre 132 e 135, os
judeus voltaram à guerrilha – e sofreram reveses ainda piores. Foram queimadas
as 50 fortalezas e as 985 vilas judaicas. Centenas de milhares de judeus
morreram e os outros tantos foram desterrados. Sobre as ruínas de Jerusalém,
Adriano construiu a cidade romana de Aélia Capitolina e ergueu um santuário a
Júpiter no local do antigo templo. Para apagar qualquer ligação dos judeus com
aquela terra, os romanos mudaram o nome da Judéia para Síria Palestina, em
alusão aos filisteus – povo que habitou a costa mediterrânea na Idade do Ferro
e que, àquela altura, já desaparecera.
De Bizâncio ao islã
Os cristãos viveram como uma
seita perseguida durante os primeiros anos da Aélia Capitolina. “Mas tudo mudou
no século 4, quando o imperador Constantino se converteu ao cristianismo e o
transformou na religião oficial de Roma”, diz o pesquisador americano Michael
Hart. Constantino também transferiu a capital do império para Bizâncio e a
chamou de Constantinopla (atual Istambul). Esse novo império seria conhecido
como Bizantino.
Com a ascensão do cristianismo,
o bispo Macário pediu ao imperador para demolir o templo de Vênus, construído
200 anos antes por Adriano, e expor a tumba de Cristo – que, segundo ele,
estaria embaixo do santuário. “Constantino gostou da idéia. Seu império cristão
precisava de símbolos e monumentos que lhe conferissem ressonância histórica”,
diz Karen. “Sob o templo, achou-se um túmulo que foi logo identificado como o
Santo Sepulcro.”
Anos depois, sob a
supervisão da rainha Helena, mãe de Constantino, os operários também
descobriram aquela que foi identificada como a pedra do Gólgota. O imperador
mandou construir várias igrejas nesse novo complexo sagrado, que ganhou o nome
de Nova Jerusalém. “Tão logo foi descoberto o túmulo de Jesus e construída a
Basílica do Santo Sepulcro, os cristãos desenvolveram sua própria mitologia a
respeito do lugar, situando-o no centro de sua espiritualidade”, diz a
historiadora. Graças às novas imigrações, os cristãos passaram a ser maioria em
Jerusalém. Os pontos de peregrinação também mudaram: em lugar do monte do
Templo e das ruínas da cidade de Davi, as novas atrações eram o Gólgota e o
Santo Sepulcro.
O cristianismo floresceu em
Jerusalém até 614, quando o Exército persa chegou aos muros da cidade.
Testemunha dos acontecimentos, o monge Antíoco Strategos relatou que os
invasores irromperam como “javalis ferozes, rugindo e matando quem quer que
avistassem, inclusive mulheres e crianças”. Segundo Strategos, 60 mil cristãos
foram mortos. Os persas destruíram todas as igrejas e confiaram Jerusalém aos aliados
judeus, mas por pouco tempo: em 629, o imperador Heráclito retomou a ofensiva e
ocupou a cidade.
No início, Heráclito perdoou
quem tinha colaborado com os persas. Porém, para apaziguar os cristãos, ele
baniu novamente os judeus da cidade e depois ordenou que todos eles recebessem
o batismo. De novo um soberano cristão desagradava os súditos judeus, cujo
apoio seria irrecuperável 3 anos depois – quando os bizantinos enfrentariam um
novo perigo mortal.
De fato, quando a Pérsia e
Bizâncio estavam exaustos de lutar entre si, Jerusalém caiu na mira de uma nova
potência: o islã. “Seus conquistadores partiram da Arábia e avançaram sobre o
Oriente Médio, África, Europa, Índia e China ao mesmo tempo, aliando a
vanguarda da ciência ao maior poderio militar da Terra”, diz o historiador
Bernard Lewis, da Universidade Princeton. As tropas marchavam sob o comando dos
califas, sucessores do profeta Maomé.
Quando entrou em Jerusalém,
o califa Omar liderou a conquista mais pacífica até então. Os cristãos se
renderam e não houve matança, queima de símbolos religiosos ou expulsão. Omar
conferiu aos cristãos e aos judeus o status de minorias protegidas. Ou seja,
eles poderiam seguir sua fé desde que pagassem impostos.
Como os ocupantes
anteriores, os muçulmanos deixaram suas marcas na cidade. A mais impressionante
é a Cúpula do Rochedo (ou Domo da Rocha), construída no monte do Templo no
século 7 pelo califa Abd Al Malik. Ela atuou como divisor de águas porque alçou
a cidade ao centro do islã. Muito da doutrina muçulmana vem da herança judaica,
incluindo a devoção aos sítios sagrados de Jerusalém. Soma-se a isso a fé
exclusivamente islâmica num episódio: a viagem que Maomé teria feito de Meca a
Jerusalém sobre um animal alado – e na companhia do arcanjo Gabriel – e sua
posterior ascensão ao céu desde a rocha sobre a qual seria erguido o domo.
Agora chamada de Al Quds (“A Santa”), Jerusalém passou a ser a 3ª cidade mais
sagrada do islã, atrás de Meca (onde Maomé nasceu) e de Medina (local da
primeira comunidade islâmica).
O contra-ataque da
cristandade começou em 1096, quando milhares de soldados rumaram a Jerusalém,
seguidos de hordas de camponeses e peregrinos – todos motivados pela promessa
papal de que a cruzada anularia seus pecados. Foi um banho de sangue. “Cabeças,
mãos e pés se amontoavam nas ruas”, escreveu na época o cronista Raimundo de
Aguilers, testemunha da matança. O novo líder local, Godofredo de Bulhão, fez
da mesquita al-Aqsa sua residência oficial e converteu a Cúpula do Rochedo numa
igreja.
Entretanto, muitos soldados
voltaram para casa após a conquista, fazendo o exército cristão minguar. Os
cruzados também não tinham um plano de governo definido, o que gerou disputas
internas. Enquanto isso, o império islâmico se reorganizou em torno do sultão
curdo Salah al-Din Yusuf Ibn Ayyub, ou Saladino. Em 1187, ele entrou em
Jerusalém disposto a vingar o massacre, mas aceitou a rendição pacífica.
Retirou as cruzes das mesquitas e entregou a custódia do Santo Sepulcro aos
gregos ortodoxos. Com a morte de Saladino, em 1194, o império muçulmano ruiu
com as lutas entre os herdeiros. Al Quds passou então para o império dos
mamelucos, um povo islamizado da Ásia Central. Foi nessa época que ela começou
a se parecer mais com a Jerusalém Velha de hoje, com bairros para muçulmanos,
judeus, cristãos e armênios.
Em 1453, os turcos otomanos
derrubaram o Império Bizantino. Não tardou até conquistarem Jerusalém, dando
início a um domínio de 4 séculos marcado pela restauração da cidade e pela boa
convivência entre os moradores. Foi o sultão otomano Solimão, o Magnífico, que
mandou reerguer as muralhas da cidade – as mesmas que podem ser vistas até hoje.
O presente
Os turcos dominaram
Jerusalém por 400 anos, mas foi apenas no final desse período que ela assumiu
as feições atuais. A antiga cidade nas colinas da Judéia se expandia além dos
muros. Sua população saltou de 11 mil habitantes em 1830 para quase 22 mil em
1870 – metade deles judeus e a outra metade árabes (muçulmanos e cristãos). Em
1880, chegaram as primeiras levas de imigrantes judeus, que realizavam o refrão
entoado em 1 000 anos de diáspora: “Ano que vem, em Jerusalém”.
O problema estava só começando.
O Império Otomano cambaleava nas batalhas contra os exércitos europeus e
enfrentava o crescente nacionalismo árabe em seu território. Em 1918, quando o
Império Otomano caiu, franceses e britânicos lotearam as terras da região em
fronteiras totalmente novas, que só respeitavam os seus próprios interesses. O
Reino Unido, que passou a administrar a Palestina, logo percebeu o abacaxi que
tinha nas mãos: judeus e árabes reivindicavam aquela terra.
Até então, Jerusalém era
secundária nessa questão. Os primeiros sionistas eram laicos – fizeram o
primeiro escritório da Organização Sionista na Palestina em Jaffa, perto de
Tel-Aviv. Aos poucos, porém, Jerusalém passou a representar a essência do
projeto nacional judaico. Entre os árabes, a luta política também assumiu
caráter religioso. Muhamad Amin Al-Hussaini, o grão-mufti de Jerusalém –
responsável pelos lugares santos muçulmanos –, utilizou a mitologia para
incentivar o nacionalismo de seu povo. “Ele transformou o monte do Templo em
símbolo da identidade palestina”, diz o historiador e ex-chanceler israelense
Shlomo Ben Ami no livro Cicatrizes de Guerra, Feridas de Paz.
Não foi por acaso que o
primeiro grande conflito entre judeus e árabes explodiu em 1929, ao pé do monte
do Templo. A partir desse ano, a festa que comemorava a ascensão de Maomé ao
céu (Al Isra) foi chamada de “Dia da Palestina”. A tensão cresceu em 1936,
quando os palestinos se revoltaram contra a permissão dos ingleses à imigração
judaica. À medida que a violência aumentava, com ataques de radicais de ambos
os lados, a comunidade internacional cogitou a divisão da Palestina. Os
ingleses propuseram isso em 1937, mas Al-Hussaini recusou a idéia.
Após um atentado com 91
mortos, perpetrado por radicais judeus em seu QG, os ingleses passaram o pepino
para as Nações Unidas. Em 1947, a ONU aprovou a divisão da Palestina em dois
Estados – um judeu e outro árabe –, com Jerusalém sob administração
internacional. Os judeus aceitaram, mas não a Liga Árabe. Resultado: Israel
declarou sua independência em 1948, ano em que eclodia a primeira das 6 guerras
com os países vizinhos. No armistício de 1949, a parte oriental de Jerusalém
(de maioria árabe) passou para a Jordânia. A ocidental (de maioria judaica)
ficou com os israelenses.
Na Guerra dos 6 Dias, em 1967,
Israel conquistou a parte oriental – e a Cidade Velha. “Retornamos ao nosso
lugar mais sagrado. Nunca o deixaremos”, disse o general israelense Moshé
Dayan, que redesenhou a cidade. “Muitos israelenses hoje se perguntam: esses
devem ser realmente os limites da cidade?”, diz Aaron Klein, correspondente da
revista Time em Jerusalém. “Existem áreas ali que são 100% palestinas. Não
fosse o traçado de Moshé Dayan, elas seriam hoje parte da Autoridade
Palestina.”
Se Jerusalém não vai à
Palestina, a Palestina vai a Jerusalém. Quando Dayan reunificou Jerusalém, 74%
dos habitantes eram judeus e 26% árabes. Como os árabes têm mais filhos e a
radicalização de ambos os lados afugenta os judeus laicos, hoje há 66% de
judeus e 34% de árabes.
Tem solução?
A questão atual de Jerusalém
envolve dois elementos: a) a soberania sobre a cidade, reivindicada por
israelenses e palestinos; e b) o status dos lugares sagrados, reclamado por
judeus, cristãos e muçulmanos.
Não que identificar esses
elementos facilite a coisa. “Nacionalismo e religião estão mais entrelaçados em
Jerusalém do que em qualquer outro lugar”, diz Bernard Wasserstein, autor de
Divided Jerusalem (“Jerusalém Dividida”, sem tradução no Brasil). A cidade é
como uma boneca russa: sempre há uma boneca menor dentro dela. Ela está no
coração da disputa entre palestinos e israelenses – apesar da pouca importância
estratégica e econômica, Jerusalém tem um valor simbólico imensurável. Esse
conflito, por sua vez, está dentro da contenda entre Israel e os países árabes
ou – como alguns querem – entre o Ocidente e o islã. Essas disputas escondem
bonecas menores, como a briga entre Hamas e Fatah e entre judeus laicos e
religiosos. O cristianismo não fica de fora, pois Jerusalém está na origem do
antagonismo entre católicos e ortodoxos.
É por isso que Jerusalém
permanece no centro do mundo, enquanto cidades como Roma ficaram no passado.
Desde que Davi tomou a fortaleza jebusita, a cidade foi continuamente destruída
e reconstruída. Onde antes voavam lanças de bronze hoje explodem terroristas
suicidas – mas as tensões continuam as mesmas.
Felizmente, as esperanças
também. “As sociedades que permaneceram por mais tempo em Jerusalém foram as
que permitiram algum tipo de tolerância e convivência”, diz Karen Armstrong.
Essa pode ser a lição para que Jerusalém realmente seja um dia a cidade da paz.
Uma cidade em camadas
Em Jerusalém, o que é velho
esconde jóias arqueológicas ainda mais antigas
JERUSALÉM HOJE
O acesso à cidade murada de
Jerusalém é feito pelas antigas portas (a mais nova – chamada, veja só!, Porta
Nova, foi construída em 1887). O centro é dividido em 4 setores: judeu,
cristão, muçulmano e armênio. Com exceção do setor judeu – em que a população
judia predomina –, os muçulmanos são maioria em todo o casco histórico.
PERÍODO OTOMANO (até o séc.
20)
Os limites da cidade
histórica se mantêm desde o domínio dos otomanos. A Via Dolorosa, que aparece
no mapa, representa as estações do suplício de Jesus. Não há evidência
histórica de que esse tenha sido o caminho da crucifixão – é provável que o
trajeto tenha sido recriado pela tradição cristã.
A CIDADE DOS CRUZADOS (sécs.
11 e 12)
Os cruzados deixaram sua
marca na arquitetura de Jerusalém ao tomar a cidade no século 11. Além de
transformar várias mesquitas e outras edificações muçulmanas (até o Domo da
Rocha) em igrejas, eles construíram seus próprios templos – como a igreja Santa
Maria Latina, que no século 19 seria tranformada em igreja luterana.
ROMANOS E BIZANTINOS
No início da era cristã, os
romanos destruíram a cidade e construíram outra, batizada Aélia Capitolina.
Sobre as ruínas do templo judeu, fizeram estátuas de seus imperadores, além de
um santuário dedicado aos deus Júpiter. Mais tarde, os bizantinos descobriram
sítios como o Santo Sepulcro e inauguraram a era das peregrinações cristãs.
Eles foram sucedidos pela ocupação muçulmana.
TERRA DE DAVI E SALOMÃO
(séc. 10 a.c.)
Nos primórdios do reino de
Israel, esta era a área ocupada pela cidade. Davi foi o primeiro rei hebreu, e
seu filho Salomão foi o responsável pela construção do Templo de Jerusalém. Mas
os hebreus não foram os primeiros ocupantes do terreno: eles o tomaram dos
jebusitas, que sucederam os cananeus...
O TEMPLO DE HERODES (séc. 1
a.c.)
Era assim a Jerusalém por
onde andou Jesus Cristo: o rei Herodes, um judeu testa-de-ferro dos romanos,
havia restaurado o templo, onde eram feitos os sacrifícios rituais judeus (após
a destruição do local, eles baniram a prática). A capital da Judéia tinha um
território bem maior que o delimitado pela muralha atual.
A pedra da discórdia
Um monte de terra árida,
distante de portos e rotas comerciais. Falando assim, nem dá para imaginar que
se trata do pedaço mais disputado do planeta: o monte do Templo. Sobre esse
monte jaz uma grande rocha que é fundamental para entender as disputas por
Jerusalém.
Há 2 mil anos, essa rocha
ficava no Templo de Herodes, cujo único vestígio atual é o Muro das
Lamentações. “Segundo a tradição judaica, essa é a rocha sobre a qual Abraão
ofereceu seu filho Isaac em sacrifício a Deus e Davi depositou a Arca Sagrada”,
diz o arqueólogo americano Eric Cline. Os muçulmanos, porém dizem que o filho
que o patriarca ofereceu em holocausto era Ismael, de quem eles descenderiam.
O monte também é o ponto de
onde Maomé teria ascendido ao céu. Sem falar que ele é sagrado para os
cristãos, pois está ligado à passagem de Jesus pelo templo. Para as 3
religiões, portanto, ali é o centro do mundo.
Muitos crêem que a rocha
esteve no Templo de Salomão, erguido há 3 mil anos. Na verdade, ninguém sabe o
local exato do templo. Não importa: essa combinação de pedras e idéias tornou
Jerusalém a cidade mais importante da história.
Hoje a segurança do monte do
Templo está a cargo de Israel, enquanto a administração é feita por um conselho
religioso islâmico chamado waqf. Os não-muçulmanos podem visitar o monte, mas
só em grupos reduzidos, em dias restritos e sem objetos religiosos. Em setembro
de 2000, o então primeiro-ministro Ariel Sharon esteve lá: isso causou a fúria
dos palestinos, que usaram o episódio como pretexto para a 2ª intifada.
Atualmente, as atenções
estão voltadas para um complexo subterrâneo conhecido como Estábulos de
Salomão. Em 1996, os waqf transformaram o local na maior mesquita de Israel. No
ano seguinte, iniciaram uma obra que retirou 12 mil toneladas de terra – o que
Israel classificou como “um crime arqueológico sem precedentes”. Com tantas
mexidas no subsolo, os arqueólogos temem que as peregrinações às mesquitas
façam o complexo desmoronar.
O que cada grupo quer para a
cidade
Governo israelense:
A posição oficial é que
Jerusalém é a capital eterna e indivisível de Israel. Recentemente, porém,
setores do governo afirmaram que o país estaria disposto novamente a entregar
bairros de maioria árabe à Autoridade Palestina.
População israelense:
59% é contra a divisão da
cidade, segundo pesquisa da Universidade de Tel-Aviv e do Centro Tami Steinmetz
de Pesquisas pela Paz.
Judeus ultra-ortodoxos:
Opõem-se a qualquer
concessão de partes de Jerusalém.
Autoridade Palestina:
Reivindica Jerusalém
Oriental como capital do futuro Estado palestino. Isso inclui lugares sagrados
como o monte do Templo. Porém, na conferência de Annapolis, realizada em
dezembro passado, o líder Mahmoud Abbas se comprometeu a negociar.
Árabes de Jerusalém:
Apesar do apoio à Palestina,
a maioria se opõe à divisão da cidade, pois perderia o trabalho nos bairros
judaicos, além do bem-estar social garantido pela cidadania israelense. Também
temem que a cidade seja governada pelo Hamas.
Hamas:
Não reconhece a existência
do Estado de Israel e boicota as negociações de paz. Seu projeto é fundar um
regime teocrático na Palestina, com Jerusalém como capital.
Vaticano:
Defendeu a
internacionalização da cidade quando a ONU votou pela partilha da Palestina, em
1947. Ultimamente vem apoiando a internacionalização apenas dos lugares santos.
Evangélicos de Jerusalém:
São contra qualquer divisão
da cidade, pois isso contraria a promessa bíblica da Terra Santa ao povo judeu.
Para saber mais
Jerusalém: Uma Cidade, Três
Religiões
Karen Armstrong, Companhia
das Letras, 2000.
Jerusalem Besieged
Eric Cline, University of Michigan
Press, 2005.
Divided Jerusalem
Bernard Wasserstein, Yale
University Press, 2002.
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