Meu rei, o sertão nunca
virou mar,
mas palavras dos seus livros
feitos para mirar
longe e infinito, como
canções de guerrear.
E a palavra virou brasa e a
brasa virou brasão
de uma carta que só será
aberta agora com sua morte.
Meu rei, que fez do nordeste
seu norte,
o reino da pedra abre-se
para sua passagem,
sem mais a lógica que lhe
impeça sua imortalidade.
Finalmente está vestido de
metáforas, de sol,
das cores extravagantes do
crepúsculo e circo.
Meu rei, você galopava entre
o indizível
e o inominável, entre a
esperança e o inesperado.
Onde ia tampouco sabia,
levava os sonhos na garupa
enquanto eles cochichavam
mitos e miragens.
A maior caça do nordestino é
a água,
não é o bicho ou a treva.
A fome nasceu da sede, a
sede criou a águia.
Meu rei, você falava rápido
como quem cantava,
cantava como quem falava. Eu
ouvia onças pintadas
em sua voz, sombras velozes
de aves no solo,
e me envolvia com a
rouquidão do seu riso.
O riso não foi à toa, o riso
só vem com a idade,
é uma conquista do tempo,
uma experiência da maturidade.
O riso é um ator frustrado
que não decorou seu texto
e improvisou, encantado, o
que via no avesso, na veia do verso, no beijo.
Meu rei, meu romanceiro
gitano, que atravessou,
com o cordel da garganta, o
frio da noite do velho
sertão do Cariri, você não
seguia planos,
não se entregava ao
sofrimento dos danos:
quando queria escrever,
desenhava
e quando queria desenhar,
escrevia.
Meu rei, meu Cervantes das
paredes das casas,
a calçada tinha o tamanho de
seu corpo,
podia passar um de cada vez,
uma multidão dentro de si.
Meu rei, meu coração de
lona, meu coração balão,
baile e pulso, do lado do
real e contra o oficial,
a favor do sim no mais
íntimo não,
você levou a sério o
palhaço, debochou da corte.
Pobre com coragem é rico,
rico com medo é pobre.
No fundo, entendia que não
há maior ambição do que estar vivo.
Vingou a morte matada do pai
com sua velhice morrida.
Meu rei, você não temia se
sujar de rua, de gente,
pois não existia lembrança
inocente.
Nunca fugia de ser escrito
pela poeira vermelha,
expunha-se com o mesmo
ímpeto às verdades e asneiras.
Seu terno era uma página em
branco,
suas sobrancelhas eram
páginas em branco,
seus sapatos eram páginas em
branco.
Meu rei, você amava redigir
no fogo.
O fogo também branco, puro e
ávido.
O fogo é a única luz que o
homem inventou.
Seu nome queimará para
sempre.
Que assim seja. Amém.
Fabrício Carpinejar
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