terça-feira, 21 de maio de 2013

0 Na virada do outono, em um reino distante, muito tempo atrás


Leonardo Sakamoto       21/05/2013 17:11


Muito, muito tempo atrás, em um reino distante, havia uma cidade grande e rica. Os moradores da área protegida pelas muralhas viviam em relativo conforto e segurança – no que pese a ação de alguns saqueadores, assassinos e alquimistas mal intencionados – cercados por dois grandes rios. Situação complicada estavam os que viviam do lado de fora, que sobreviviam trabalhando para o burgo, fazendo pequenos biscates, operando milagres e sendo vítimas dos mais absurdos ardis. Os que tinham o azar de nascer do lado de fora, com raras exceções, viviam menos e pior.

Uma vez por ano, como forma de integrar a capital do reino, os portões da cidade se abriam para as festividades de outono, que atravessavam a noite. Um grande número de moradores da cidadela e do entorno se uniam em cantorias e danças, iluminados e aquecidos por fogueiras espalhadas pelo centro da cidade, quando havia muita alegria.

Até que, em um das festas, a quantidade de vítimas de saques e violências teria sido maior que a de costume. Os mais velhos diziam que a culpa era da guarda real, que não recebeu o montante de soldo que esperava e negou-se a cumprir suas funções. Os nobres resmungavam que isso era a gota d’ água, que tinha ficado insustentável abrir os portões da cidade para a plebe rude e pediram para as fogueiras serem movidas para outros locais.

É fato que grande parte dos gatunos via no mundaréu de gente uma chance de lucrarem de forma fácil e vil. E alguns parvos que não conseguem viver em sociedade aproveitavam os festejos para fazer mal aos outros e se aproveitar das mulheres. A verdade é que muito se falou das violências nos festejos de outono e até outras cidades do reino pensaram duas vezes antes de abrir seus portões diante das histórias que circularam.

Tempos depois, um dos mensageiros do burgo reconheceu, em uma de suas entregas nos arredores da cidadela, um grupo de jovens que havia participado de um saque coletivo nas festividades. Surrupiaram chapéus, botas, dinheiro – até instrumentos que faziam música. Lembrara bem do rosto deles porque perdera o anel com a qual pediria sua amada em casamento – o que fez com que atrasasse os planos em uma ou duas colheitas.

Os jovens eram aprendizes de ofício em uma casa de ferreiro. Perguntou, intrigado, sob juras de anonimato, a razão de terem feito aquilo com a cidade deles, pois – apesar de não terem posses – não precisavam da tunga para sobreviver. Como resposta, ouviu apenas “a cidade é de vocês, não nossa”.

Percebeu que, para aqueles meninos, aquilo não foi apenas um assalto, mas uma tomada simbólica de um território que, nem de perto, eles conseguiam ver como seu – porque, de fato, não era. Usavam dos instrumentos covardes do roubo e da intimidação sem pudor porque não se viam como cidadãos. Eram invasores estrangeiros e, mais do que pilhar, queriam mostrar que eram capazes de pilhar diante do olhar impotente dos demais.

Voltou para a cidade pensando no que ouviu. No caminho, cruzou com a guarda pretoriana que cumpria um mandado de desocupação de um campo de um dos nobres tomado por oficinas de ofícios e casas de farrapos. Nunca soube o que aconteceu com os meninos. Mas também não se importou, estava muito atarefado com as mensagens que tinha que transmitir e a manutenção de seu emprego.

 Antes que reclamem de mim, isso não é daqui, nem de agora. É de um reino distante, de muito, muito tempo atrás.

Fonte: UOL Notícias. 

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